4 de agosto de 2009

Pedindo perdão pela ausência

Palavras velhas de um amor puído

O cartão melancolicamente empoeirado, sobrando no fundo da prateleira. Sou eu e uma história de amor. Relatos da vida pessoal de um objeto confeccionado para nutrir os mais belos sentimentos e perceber o mais destemido e deslavado destino dos tolos amantes.

Compraram-me no inverno; no fim de Junho quando todos os cartões mais sofisticados já tinham sido vendidos no dia dos namorados. Época do ano em que os atacadistas estão mais preocupados com o dia do amigo e se esquecem do amor. Eu compreendia a minha ineficiência.

Um rasgo na lateral e o Garfield. O gato laranja sem alma e que não emana nenhum romantismo; estava eu fadado ao fundo do almoxarifado durante o próximo verão. Pois estão, a mocinha chegou.

Olhando a seção de Amizade primeiro, abrindo vários, parecia-me fazer daquela breve leitura uma diversão. Continuava a folhear os múltiplos coloridos já com desinteresse quando avistou a minha estante. O mostruário imenso de ilusões.

Catou os primeiros, mas ela era refinada. Buscou os menos comerciais, os mais autênticos. Descreveu assim o seu amor por ele “Menos comercial e mais autêntico”.
Fui adquirido por seis reais e vinte centavos. O troco ela entregou na mão de um menino de rua. Soube então que tinha a sorte de ter uma dama exemplar.

Quando chegou a casa me pusera na última gaveta, debaixo dos antigos álbuns de figurinhas, com o provável medo de que a mãe descobrisse suas esperanças românticas. A mãe procurando um extrato achou-me depois de duas semanas, mas não comentou nada. Não que eu tenha ouvido. Eu começava a ficar empoeirado novamente quando a moça puxou a gaveta de uma vez, esbaforida; cheguei a pensar que eram novas figurinhas. Mas era a minha hora.

Os materiais infantis forjavam bem a madura donzela que escondia com fitas no cabelo as palavras de um amor destemido, ousado. Seu amado não era ficção, nem ilusão. Descreveu-me suas carícias, seus apelos, seus “maravilhosos lábios inferiores”. Me contou teu amor, me pediu pra não esquecer e disse que éramos muito jovens, muito amigos, e somente.

Que tinha visto um filme que lhe recomendara e estava inspirada. Disse que me amava e que não deveríamos ficar juntos. E que eu nunca a esquecesse. E que seríamos certamente eternos.

Confundiu o embriagante rapaz a quem fui entregue alguns sete meses depois. Durante o outono, no centro da cidade, eles conversavam, riam, gemiam, suspiravam baixinho esses suspiros que só eu compreendo. Ela me arrancou do fundo da mochila junto com um pingente dourado e eu só pude ver as pistas congestionadas de cada um dos lados, em diferentes direções.

Entrei noutra mochila. A dele; o pobre acusado de ter outra. Sem tom de acusação ela só me declarou da nova desventura dele e ele chorou demais quando ela disse que era melhor que não se vissem nunca mais. Ela tomou um ônibus no ponto da direita. Ele tomou um no da esquerda e soluçava amedrontado.

Caiu na cama naquela tarde, enroscou os braços atrás da cabeça e ali permaneceu durante umas duas horas com o cartão no peito, olhando pro teto. As lágrimas rolavam pelo cantinho de seus olhos e o coração, deu pra sentir muito bem, tinha repousado como ele e parecia gemer de dor, não sei bem como, nem por quê.

Gostei dele também. Mais simples, mas nunca comum. Deixou-me na gaveta de cuecas, junto com um bonequinho samurai e o pingente. Quando estava sozinho em casa punha o som alto e eu via seus lábios percorrendo as palavras bonitas que faziam a minha transformação de um cartão qualquer para a história de amor daquele casal.

Chegava a me apoiar na varanda, erguer a mão, ameaçar picotar-me em mil e fazer chuva colorida da avenida lá embaixo. No entanto desistia. Parecia encarar com valentia aquele infinito amor.

Cá estou. Na mala do viajante. Percorri o mundo com o homem apaixonado sem paixão. Ele namorou três anos quase quatro. Abandonou a faculdade. Abandonou a família, mas volta de vez em quando comigo. Virou professor de amor, ensina literatura transformando todas as histórias na sua e de sua amada. Péssima compreensão textual. Mas os alunos gostam, são todos jovens estúpidos que amam em todas as partes do mundo. Como ele foi. E é.

No pé de um pôster de filme americano ele rasurou, quando passava por um cinema abandonado na décima sexta avenida: Mais comercial e menos autêntica.

Recebeu seu último livro pelo correio em alguns meses enrolado no pôster. Com o dito ainda gravado abaixo dos pés dela. Dez anos mais mulher e quase nua, uma estrela. Ele leu o livro inteiro, a procura de qualquer resposta e encontrou no capítulo cinco, página oitenta e cinco.

“Não abuse das palavras velhas de um amor puído. Sua literatura sou eu se meu cartão ainda existe.”

Um comentário: